A interrupção da gestação em uma menina de 10 anos que engravidou depois de ter sido estuprada pelo tio mobilizou a opinião pública nos últimos dias no Brasil.
As diversas tentativas de evitar o aborto da criança geraram indignação da classe médica, especialmente de ginecologistas e obstetras, que alertam para os riscos de levar adiante uma gravidez na infância.
“Imagine um bebê passar por um canal de parto de uma criança que não tem a bacia completamente formada?”, diz a ginecologista e obstetra Melania Amorim, professora da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira, de Pernambuco. Segundo ela, os riscos de uma gravidez precoce são elevados e se agravam quanto menor for a idade da gestante.
“A literatura mostra que essas meninas têm risco maior de pré-eclampsia, eclampsia, obstrução do parto, sem falar nos riscos para a vida dos bebês”, ressalta. Melania Amorim lembra que o corpo de uma adolescente não está completamente desenvolvido para conceber e parir e, em caso de gestações em meninas abaixo de 15 anos, aumenta a probabilidade de morte materna.
Para a ginecologista e obstetra Silvana Quintana, da Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo e professora de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP, esse tipo de gravidez é de alto risco.
“Do ponto de vista biológico e orgânico, é inadmissível. Não era nem para essa menina ter iniciado sua vida sexual, muito menos para ter sido abusada e muito menos para ter engravidado. Então, eu não vejo uma justificativa para as pessoas não entenderem que seria uma gestação de alto risco e que não havia motivos para que essa gravidez evoluísse”, afirma.
A especialista também defende que a interrupção da gravidez até 22 semanas (como era o caso da menina) é menos perigosa do que um parto. “Feita de forma segura, em um ambiente propício e com profissionais capacitados, é muito menos prejudicial do ponto de vista biológico do que levar a gestação de uma criança de 10 anos a termo. Eu não tenho dúvidas disso”, salienta.
Estupro de vulnerável
A Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras também lembra que abaixo de 14 anos, toda gravidez é tecnicamente estupro de vulnerável. “Este é um reflexo de uma sociedade profundamente machista e patriarcal, na qual a violência contra a mulher permeia o cotidiano e mesmo crianças são vítimas de estupro, perpetrado em geral por pessoas muito próximas, como o pai, o avô, tios e padrasto”, diz o comunicado.
O documento salienta que, de acordo com dados do 13o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, ocorrem 180 estupros por dia no Brasil. Cerca de 54% das vítimas são meninas de até 13 anos.
“Em decorrência dessa grave violação de caráter recorrente, pois crianças muitas vezes passam anos sendo atacadas por seus algozes mediante graves ameaças, meninas podem engravidar, o que não somente agrava ainda mais o sofrimento psíquico mas as coloca em sério risco de vida”, afirma a Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras.
Além disso, o caso da garota da cidade de São Mateus (ES), que era abusada sexualmente pelo tio de 33 anos desde os seis anos, não é uma exceção, lembra a ginecologista Melania Amorim. “A cada hora nós temos quatro estupros de meninas de até 13 anos. Em 2018, aconteceram 21 mil nascimentos de meninas com idades entre 10 e 14 anos, o que é muito chocante”, diz, ressaltando que a maioria desses partos têm relação com agressões sexuais.
Silvana Quintana salienta que para cada mulher adulta vítima de violência sexual, há duas crianças submetidas a este mesmo tipo de agressão.
“Entre 5% a 7% dessas violências culminam em gravidez. Geralmente, o agressor faz parte do ambiente familiar das vítimas. Existe com ele um pacto de silêncio porque a vítima não conta que está sendo molestada. No meu serviço, tivemos apenas nesse mês uma menina de 11 anos e uma de 13 para interrupção legal de gestação”, conta.
Procedimento é autorizado pela Constituição
No último fim de semana, o Tribunal de Justiça do Espírito Santo concedeu à menor o direito de interromper uma gravidez fruto de um estupro. No Brasil, o procedimento é autorizado pela Constituição em casos de estupro e quando existe risco de vida à gestante.
No entanto, a garota não conseguiu ser atendida no Espírito Santo: o hospital de referência em Vitória alegou questões técnicas para não realizar a interrupção da gravidez, afirmando que a idade gestacional estava avançada. Acompanhada da avó, a criança viajou ao Recife (PE), onde foi recebida no Centro Integrado de Saúde Amauri de Medeiros (Cisam).
Nas redes sociais, várias personalidades de comunidades religiosas e conservadoras se manifestaram contra o procedimento. A bolsonarista Sara Winter divulgou o primeiro nome da menina – crime previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) –, além do endereço da unidade de saúde onde o procedimento seria realizado.
No domingo (16), dezenas de manifestantes que se autoclassificam de “pró-vida” cercaram o local e agrediram verbalmente o médico e gestor da unidade, Olimpio Barbosa de Morais Filho, responsável pela equipe médica do hospital de Recife.
O caso também resultou em manifestações da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves. “Os médicos do Estado do Espírito Santo entendem que o aborto nesta idade pode colocar em risco a vida da mãe ou deixá-la com sequelas permanentes, como útero perfurado”, publicou em sua página no Facebook no domingo.
“Muito possivelmente a ministra Damares, além de não ter o devido conhecimento técnico e não ser bem assessorada por uma equipe técnica, já que nenhum dos ministérios do Brasil prioriza ter especialistas da área em seus quadros, ela está visivelmente contaminada por sua visão conservadora sobre o tema. É fato que os setores religiosos mais conservadores e mais radicais são contra a interrupção da gravidez, mesmo prevista em lei e querem fazer crer que em qualquer situação as mulheres deveriam prosseguir a gestação”, observa Melania Amorim.
Segundo entrevista do responsável pela equipe médica do hospital de Recife à imprensa brasileira, o procedimento foi realizado no domingo (16) e a menina passa bem.
A decisão da Justiça do Espírito Santo e o gestor da Cisam, Olimpio Barbosa de Morais Filho, foram apoiados por diversas associações e comunidades médicas do país, como a Sogesp. “A nossa posição é sempre preservar a saúde das mulheres com as melhores evidências científicas que nós temos. Nesse momento, as evidências são que a menina tem esse direito e que se o procedimento não fosse realizado, poderia aumentar os riscos para a saúde dela”, conclui Silvana Quintana.
// RFI