Uma cidade brasileira pode ter atingido imunidade de grupo ao Covid-19 a um terrível custo

António Lacerda / EPA

Um surto explosivo de COVID-19 em Manaus pode ter contaminado pessoas suficientes para que a imunidade coletiva tenha se manifestado, sugerem estudos iniciais.

Exames de anticorpos mostram que até dois terços da população pode ter contraído o Sars-CoV-2, de acordo com um time de cientistas internacional incluindo pesquisadores do Brasil, Reino Unido e EUA em 21 de setembro no servidor de pré-impressão medRxiv. Os pesquisadores dizem que isso poderia explicar a redução gradual e sustentada de novos casos na cidade.

“É um tanto difícil descobrir se isso é pura imunidade de rebanho versus uma combinação de coisas”, afirma Thomas Russo, chefe da divisão de doenças infecciosas da Escola Jacobs de Medicina e Ciências Biomédicas da Universidade de Buffalo (EUA), que não esteve envolvido no estudo, para o Popular Science. “Mas é intrigante com certeza”.

A imunidade do rebanho, também conhecida como imunidade de grupo, se desenvolve quando um número suficiente de pessoas está protegido contra uma doença infecciosa — seja por meio de infecção ou vacinação — que não pode se espalhar facilmente para o resto da população. Quando chega nesse ponto cada paciente que contrai a doença a transmite para menos de uma pessoa em média, o que leva que o número de novos casos diminua. Os pesquisadores não têm certeza de qual é esse limite para o SARS-CoV-2, mas Russo diz que as estimativas variam de 60 a 80%.

O novo estudo não pode esclarecer exatamente quando a imunidade de grupo entra em ação. É possível que em alguns dos locais mais atingidos pelo covid-19, a queda de novos casos reflete a enorme fração da população que desenvolveu imunidade e os impactos de práticas como uso de máscara e distanciamento físico. O estudo ainda precisa ser revisado por outros cientistas. Mas Russo observa para o POPSCI que os resultados não são surpreendentes se encaixando nas previsões dos epidemiologistas.

No estudo os cientistas fizeram medições de anticorpos do SARS-CoV-2 em amostras de doadores de sangue de duas cidades entre fevereiro e agosto. Manaus sofreu um surto terrível de Covid-19 após a confirmação do primeiro caso em 13 de março. Os novos casos aumentaram explosivamente em março e abril, até atingir um pico no começo de maio e reduzir entre maio e setembro, mesmo depois que o lockdown foi relaxado.

Com base nas comparações dos resultados positivos para anticorpos, os cientistas estimaram que aproximadamente 44% do povo de Manaus possuía anticorpos detectáveis ​​em junho. Como demora certo tempo para que os anticorpos apareçam após o paciente ser contaminado, os cientistas calculam que 52% da população estaria contaminada nessa época. Houve uma redução de resultados positivos nos últimos meses, possivelmente porque as taxas de anticorpos detectáveis ​​caiu com o tempo. O time finalmente estimou que até 66,1% do povo em Manaus foi contaminado.

“Embora intervenções não farmacêuticas, além de uma mudança no comportamento da população, possam ter ajudado a limitar a transmissão da SARS-CoV-2 em Manaus, a taxa de infecção excepcionalmente alta sugere que a imunidade de rebanho desempenhou um papel significativo na determinação do tamanho da epidemia.”, afirmaram os pesquisadores no estudo.

Diferentemente, São Paulo — onde o primeiro caso de Covid-19 no Brasil foi confirmado 25 de fevereiro — passou por um surto de menor intensidade nos primeiros meses. Em junho, o nível dos anticorpos na população chegou a apenas 13,6%.

Não está claro a causa pela qual o Covid-19 explodiu em Manaus, que estabeleceu medidas de restrição semelhantes a São Paulo e outras cidades no Brasil desde o fim de março. Os cientistas pensam que a forte transmissão em Manaus pode ter sido intensificada pela superlotação, pouco acesso a água potável e a grande dependência de viagens de barco, comumente lotados. A média de idade da população também é mais jovem que a de São Paulo. Jovens podem sair com muito mais frequência, transmitindo mais o vírus. Isso também pode ser a explicação para uma taxa de mortalidade menor em Manaus do que São Paulo por Covid-19.

Os cientistas lembram que suas constatações não podem ser aplicadas diretamente a outras cidades, já que a transmissão generalizada do Covid-19 depende de inúmeros fatores como quantas pessoas são imunes, rigor do distanciamento físico, etc. Os voluntários que doaram seu sangue eram adultos saudáveis que não representam necessariamente a população como um todo.

“Manaus pode atuar como uma sentinela para determinar a longevidade da imunidade da população e a frequência das reinfecções”, alertaram os pesquisadores.

A imunidade de grupo, realmente, pode ter retardado a disseminação do Covid-19 em Manaus, disse Russo, mas essa não é uma estratégia que deve ser aplicada em nenhum lugar. Cerca de três milhões de pessoas estariam mortas nos EUA, e os cientistas acham que o Covid-19 esteja causando sérios problemas de saúde de longo prazo, mesmo nos pacientes de casos levem ou naqueles sem qualquer sintoma.

“Definitivamente haverá um excesso de mortes e quase certamente um excesso de consequências para a saúde de médio e longo prazo”, afirmou Russo. “Pode haver ramificações [da infecção] que não são percebidas inicialmente do ponto de vista da saúde, mas podem aparecer em meses, anos ou décadas.”

Além do mais, a maior parte do mundo — mesmo aqueles com epidemias potentes de Covid-19 — está muito longe de chegar na imunidade de rebanho. No entanto, Russo diz que contar com medidas de saúde pública como usar máscaras, lavar as mãos com frequência e distanciamento físico podem trazer um efeito similar à imunidade de grupo.

“Minimizar o número de pessoas infectadas e usar as medidas de saúde pública como um substituto para proteção até chegarmos à vacina é a chave.”

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