O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma nesta quarta-feira (18) um julgamento que pode travar por prazo indeterminado a regularização de 1.536 territórios quilombolas e provocar uma mudança radical na política voltada a essas áreas.
A decisão é aguardada com grande expectativa pela bancada ruralista, favorável à revisão das regras atuais, e por comunidades quilombolas, que temem a inviabilização de novas demarcações – muitas das quais se arrastam há mais de uma década.
A retomada do julgamento – iniciado há cinco anos – estava prevista para agosto, mas foi remarcada após o ministro Dias Toffoli, o próximo a votar, tirar uma licença médica naquele mês.
Segundo o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), 220 territórios quilombolas já foram titulados no país, e outros 1,5 mil estão em processo de regularização. A Fundação Palmares diz já ter certificado mais de 2.600 comunidades, primeira etapa no processo de reconhecimento.
Autoidentificação em xeque
O STF analisará uma ação proposta em 2004 pelo então PFL (atual Democratas – DEM), na qual o partido questiona a validade de um decreto presidencial que define os critérios para a demarcação dessas áreas.
Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.239, o DEM diz, entre outros pontos, que essas demarcações não poderiam ter sido regulamentadas pela Presidência, e sim pelo Congresso, e questiona a possibilidade de que os quilombos se autoidentifiquem.
O decreto que regula o tema foi assinado em 2003 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva e mudou os trâmites da demarcação de áreas quilombolas, tornando-a competência do Incra. Até então, essa era uma atribuição da Fundação Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura.
O julgamento começou em 2012 e está empatado em um a um. O relator do caso, ministro Cesar Peluzo (que deixou o STF naquele mesmo ano), concordou com o pedido do DEM e votou pela inconstitucionalidade do decreto.
Já a ministra Rosa Weber avaliou que o decreto é legal. O julgamento foi paralisado em 2015, quando o ministro Dias Toffoli pediu vista do processo para estudá-lo melhor.
Para Ivo Fonseca, quilombola da comunidade Frechal, no Maranhão, e membro da Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas (Conaq), caso o STF considere o decreto inconstitucional, a violência no campo deve aumentar.
“Qualquer que seja o resultado, não deixaremos de pleitear nossas terras. Desde que chegamos ao Brasil como migrantes forçados, é o que sempre fizemos – e é o que vamos continuar a fazer”, ele diz à BBC Brasil.
Fonseca afirma que a titulação das terras é importante por garantir às comunidades segurança e acesso a políticas públicas. “Você tem liberdade de ir e vir, de construir, de ter desenvolvimento produtivo – você tem acesso a um conjunto de elementos que ajuda a ser cidadão neste país.” Segundo ele, alguns quilombos não regularizados enfrentam dificuldades até para construir poços artesianos ou escolas.
Ele diz esperar que, caso o STF decida que o decreto é inconstitucional, que ao menos preserve o status das áreas já demarcadas – caso de seu quilombo no Maranhão.
Já o DEM e a bancada ruralista afirmam que o decreto dá margem para fraudes e deve ser derrubado. Para o deputado federal Alceu Moreira (PMDB-RS), um dos principais líderes ruralistas no Congresso, o processo atual de demarcação realiza “uma reforma agrária por outros meios”.
Segundo Moreira, antropólogos contratados pelo Incra sempre chancelam as posições das comunidades que reivindicam terras, em vez de avaliar as demandas com base em documentos históricos. “A grande falcatrua está no processo de autodeclaração”, ele diz à BBC.
Ele afirma que em Osório (RS), sua cidade natal, proprietários rurais correm o risco de perder terras onde vivem há várias gerações “porque um belo dia oito ou dez pessoas resolveram que eram quilombolas, orientadas por ONGs e professores de universidades”.
O também ruralista e deputado federal Luis Carlos Heinze (PP-RS) diz esperar que o STF defina no julgamento um “marco temporal” para todas as demarcações de áreas quilombolas e indígenas.
Segundo o princípio do marco temporal, só teriam direito a reivindicar terras os indígenas e quilombolas que as ocupassem numa data específica. Para Heinze, a data deve ser a mesma da promulgação da Constituição: 5 de outubro de 1988.
Por esse princípio, terras que estivessem livres de indígenas ou quilombolas nessa data não poderiam ser reivindicadas.
O princípio do marco temporal – citado pelo Supremo no julgamento sobre a Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, em Roraima – inviabilizaria grande parte das demarcações em curso e é combatido por indígenas e quilombolas, muitos dos quais dizem ter sido expulsos de seus territórios originais antes de 1988.
Quilombolas e indígenas têm protestado contra o estabelecimento de um marco temporal para as demarcações.
Processos parados
Desde 1995, quando o governo federal demarcou pela primeira vez uma comunidade quilombola, uma minoria dos grupos conseguiu os títulos das terras. Vários processos se arrastam há mais de uma década e foram parar na Justiça.
O Executivo tem feito pouco para destravá-los. Em abril, a BBC publicou uma reportagem mostrando que o governo Michel Temer havia ordenado a suspensão de titulações de territórios quilombolas até que o STF retomasse o julgamento da ação do DEM.
A decisão, comunicada pela Casa Civil ao Ministério Público Federal em ofício, ocorre num momento em que o governo atende a várias demandas da bancada ruralista em troca de apoio político no Congresso.
Ciberia // BBC