Mudanças foram feitas no governo Bolsonaro e podem ser revertidas em agosto de 2023.
Quem fizesse documento nacional de identidade no Brasil, em 2022, pela primeira vez ou com uma nova via, receberia um formato com espaço para nome social, abaixo do nome de registro, e outro para identificação de sexo. As alterações foram adicionadas na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL, Partido Liberal).
Com a mudança de governo no início de 2023, porém, um grupo de trabalho formado por vários ministérios decidiu ouvir reivindicações de entidades LGBTQIA+ e órgãos públicos e reverter as definições na nova atualização da CNI (Carteira Nacional de Identidade).
Anunciado em maio, o novo documento brasileiro deverá ter apenas nome, conforme declarado pela pessoa no ato da emissão, sem distinguir nome social e nome de registro civil, e não terá menção a sexo/gênero.
O objetivo é torná-lo mais inclusivo e representativo, depois das críticas recebidas pelo modelo instituído pelo governo anterior, inclusive vindas do Ministério Público Federal. Uma das alegações apontava que o formato “estimularia violações de direitos humanos contra pessoas trans”.
Em uma nota técnica assinada pelo procurador federal dos direitos do cidadão, Carlos Alberto Vilhena, e pelo coordenador do Grupo de Trabalho Populações LGBTI+: Proteção de Direitos, Lucas Almeida Dias, eles explicam:
“Essas exigências, contudo, implicam em exposição vexatória e inegável constrangimento à população LGBTI+, principalmente a pessoas trans, sobretudo àquelas que não querem ou têm dificuldades em realizar as mudanças concernentes ao nome e/ou gênero registral.”
A discriminação e inquirição que expõe essa parcela da população às diversas violências, humilhações e tratamentos degradantes, violam o direito à autodeterminação identitária dessas pessoas.
Em abril deste ano, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que assumiu a presidência em janeiro, criou um grupo de trabalho com várias áreas para discutir mudanças no documento. Além das questões sobre gênero e nome, algumas delas visam diminuir as chances de fraude.
O Ministro de Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, publicou um fio no Twitter comentando a discussão sobre as mudanças no RG (sigla para Registro Geral, como o documento é conhecido):
Nele, Silvio reiterou que a mudança apenas revoga uma medida que discriminava parte da população e lamentou as críticas, lembrando que os campos “sexo” e “nome social” sequer existiam nos documentos de identidade emitidos antes de 2022 e da alteração feita no governo Bolsonaro:
“É espantosa a reação surpresa e até indignada com a revogação de uma medida que não tem mais de um ano e que foi feita apenas para discriminar e aumentar o preconceito.”
Em entrevista à rádio CBN, Symmy Larrat, secretária nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, vinculada ao ministério de Almeida, acrescentou ainda sobre as alterações:
“Isso tem a ver com uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal). O STF disse que a autodeterminação de gênero é legal, constitucional, é um direito. Então, as pessoas ao colocarem o nome de registro ao lado do nome social, para além do vexatório, está ferindo uma decisão constitucional. Está ferindo um direito conquistado dessa população.”
Depois que as alterações forem publicadas no Diário Oficial da União, os documentos poderão ser emitidos no novo modelo.
Em resposta ao Global Voices, o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos disse que ainda não publicou o ato oficial que definirá as alterações, uma vez que a equipe técnica responsável identificou a necessidade de aprimorar o texto, incluindo, por exemplo, mais alguns pontos importantes para adequação à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).
A publicação das novas definições está prevista para acontecer até o início de agosto.
Críticas aos campos sexo e nome social
No ano passado, o Ministério Público Federal chegou a manifestar posição favorável à suspensão do documento até que houvesse alterações nos pontos que poderiam gerar discriminações, alegando não haver necessidade administrativa ou burocrática que justificasse a inclusão do campo “sexo”.
A inclusão do nome social em campo separado também foi questionada, já que travestis e transexuais continuariam exibindo o nome de registro, conhecido também como “nome morto“, podendo provocar constrangimento.
A Procuradoria avaliou ainda que o uso do nome de registro antes do nome social “configura flagrante violação do direito à auto identificação da pessoa trans”.
A nota também leva em consideração casos de pessoas intersexo, que nascem com características físicas, genéticas ou hormonais que não se enquadram nas definições biológicas típicas de feminino ou masculino. O texto diz:
“É que as características morfológicas não são determinantes para o reconhecimento da identidade do indivíduo, de forma que não cabe ao Estado, ainda que indiretamente, constituir a auto identificação.”
Como citado pelo jornal Folha de S. Paulo, a manifestação ocorreu a partir de uma ação civil pública movida por entidades contra a proposta. Em outubro de 2022, a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) e ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos) protocolaram o pedido de suspensão do novo modelo, contra a União, na 13ª Vara Federal Cível da SJDF (Seção Judiciária do Distrito Federal).
Na época, ainda segundo o jornal, o então governo federal justificava as medidas alegando que faziam parte de padronização internacional.
Inclusão da Comunidade LGBTQIA+
O anúncio das alterações foi feito pelo atual governo federal durante um evento que marcou o Dia Nacional e Internacional de Enfrentamento à Violência Contra as Pessoas LGBTQIA+, em 17 de maio.
O Brasil segue apontado como um dos países com mais mortes registradas de pessoas LGBTQIA+, e dados dessa população ainda estão sendo analisados.
Segundo o Ministério dos Direitos Humanos, as medidas adotadas para o documento de identidade se fazem cruciais na identificação e valorização dos direitos dessa população.
Em maio, o secretário de Governo Digital, Rogério Souza Mascarenhas, defendeu que as alterações no novo documento devem representar com mais fidelidade o cidadão brasileiro em geral:
Teremos um documento inclusivo. Pretendemos que esse seja um instrumento que permita a reconstrução da relação de cidadania entre o Estado e o cidadão, que a gente saiba com quem que a gente está falando e que essa pessoa possa exigir do Estado seus direitos e cumprir seus deveres, além de ser reconhecido como uma pessoa.