Usar roupas tidas socialmente como femininas não é um problema, o assédio sim.
É muito comum que, ao vestir roupas tidas como femininas, homens cisgêneros heterossexuais sintam-se à vontade para assediar mulheres cis ou trans. Quem, sendo mulher, já não passou por uma situação assim durante o Carnaval? Existe, por parte de muitos desses homens, a ideia de que o “vestir-se de mulher” dá uma permissão sobre o corpo da outra pessoa. É preciso deixar nítido: isso é assédio.
Nesse mesmo sentido, há ainda uma concepção equivocada de que usar roupas tidas enquanto femininas significa tornar-se uma travesti. Constantemente, entre uma brincadeira e outra no Carnaval, ouvimos homens fazendo comentários pejorativos como “traveco”.
Apesar das roupas serem um ponto importante no processo de transição de travestis e mulheres trans, não é a roupa que constitui a identidade desse grupo. Pensar assim é enxergar essa identidade como uma fantasia, o que é um erro.
Pode até parecer óbvio, mas não é. Então, vamos repetir: travestis e mulheres trans não são fantasias. Homens cisgêneros usando roupas tidas como femininas, durante o Carnaval, não são travestis ou mulheres trans.
Masculinidade tóxica e violência contra as mulheres
Essa não é apenas uma discussão sobre roupas, mas principalmente sobre masculinidades tóxicas. O Brasil registrou mais de 73 mil violações de direitos durante o Carnaval de 2024, conforme dados do Disque 100, da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), .
O Instituto Locomotiva e Question Pro realizaram uma pesquisa com 1.016 mulheres brasileiras, entre 18 e 55 anos. Entre as entrevistadas, 86% relataram ter sofrido algum tipo de violência ou assédio durante o Carnaval: 54% delas foram vítimas de assédio verbal, enquanto 31% foram assediadas fisicamente.
Esses dados nos permitem observar como existe uma linha tênue quando estamos falando sobre o direito de brincar a folia em segurança. Quem são, de fato, as pessoas que não precisam se preocupar com a roupa que estão vestindo ao sair de casa? Nós, geralmente, sabemos a resposta para essa pergunta. Dos camarotes aos trios elétricos, segurança no Carnaval é sinônimo de masculinidade e branquitude.
Entre Muquiranas e pistolas de água
Criado em 1985, formado apenas por homens cisgêneros, o bloco Muquiranas é uma das maiores agremiações carnavalescas de Salvador. Os componentes se intitulam como o primeiro bloco de homens travestidos na história da maior festa popular do planeta. E as pistolas de água viraram um artefato comum no bloco, há pelo menos uma década.
Em fevereiro de 2023, o jornal Bahia Notícias flagrou uma mulher sendo assediada e atacada com pistolas d’água por associados do bloco. Em decorrência das cenas, que podemos chamar de violência de gênero, a Defensoria Pública da União e a Defensoria Pública do Estado da Bahia cobraram uma resposta sobre o ocorrido. Em nota publicada no Instagram, o bloco desviou-se da responsabilidade do ato.
Nessa lógica, em decorrência das denúncias, o Muquiranas precisou firmar um acordo com o Núcleo de Enfrentamento às Violências de Gênero e em Defesa dos Direitos das Mulheres, do Ministério Público da Bahia, para pensar ações de combate à violência contra a mulher. Em maio do mesmo ano, a deputada Olivia Santana (PCdoB), com um discurso em defesa dos direitos das mulheres, aprovou na Assembleia Legislativa da Bahia, um projeto de lei (PL) para proibir o uso de pistolas d’água nos blocos. O PL foi sancionado pelo governador baiano em janeiro de 2024.
Para as mulheres, qual a compreensão de uma manada de homens vestidos com roupas tidas como femininas no Carnaval? Uma negação ao espaço público, lazer e cultura, mas sobretudo à segurança. É fato que mecanismos legais contribuem para o efetivo respeito, mas é preciso uma lei para proibir esses homens de assediarem mulheres em uma festa popular? Infelizmente, sim. Significa dizer que as mulheres estão protegidas? Infelizmente, não (os dados apresentados aqui nos provam isso).
No Carnaval, pode tudo?
Fetiche, diversão ou fantasia? Usar roupas lidas socialmente como femininas não é um problema, não há dúvidas de que as pessoas devem usar o que se identificam. Esse texto não pretende dizer o que homens podem usar ou não, mas sim nos permitir uma reflexão sobre o comportamento desse grupo quando estamos falando de Carnaval.
O respeito não é como pôr uma saia ou um biquíni que se pode tirar após o fim de mais um bloco carnavalesco. Se você é um homem cisgênero e quer se divertir dessa maneira, comece respeitando o espaço das mulheres que estarão presente nos dias de festa. Seja o que você quiser, mas permita que o outro também seja sem precisar contar com a sua inconveniência.
É essencial destacar a importância da escuta ativa e da validação das experiências das mulheres (cis ou trans e as demais intersecções) que sofrem assédio e violência no Carnaval para pensar medidas e mecanismos que contribuam para espaços seguros. Além disso, discutirmos a fundo quais são os papéis dos homens na prevenção do assédio e da violência contra as mulheres. Tá tudo bem se vestir de Xuxa, mas não pode querer acreditar que vai sentar sozinho na janela da nave.
Por fim, aproveito para ressaltar como uma cultura patriarcal contribui, cotidianamente, para a violência contra as mulheres no Carnaval. O que pode parecer, apenas, uma discussão de vestimentas, tem um elo profundo e histórico com a negação do direito ao espaço público. Nós sabemos que o papo aqui não é sobre o uso de pistolas em um bloco carnavalesco ou uma tiara rosa sendo usada por homens cisgêneros.
// AzMina