Os bombeiros ainda não tinham conseguido controlar as chamas que atingiram o Museu Nacional na noite de domingo (2) quando outro tipo de incêndio começou nas redes sociais.
Museu Nacional
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Poucos minutos depois das primeiras notícias sobre o fogo, que destruiu 90% dos 20 milhões de itens do museu, políticos e militantes da direita à esquerda já usavam o incidente como argumento para discussões partidárias.
A tragédia gerou mais de 1,6 milhão de postagens no Twitter entre as 19h de domingo e as 13h de segunda-feira (3), segundo dados da Sala de Democracia Digital, iniciativa da Diretoria de Análise de Políticas Públicas 8DAPP) da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Também houve uma grande atividade no Facebook, de acordo com informações do Monitor do Debate Político no Meio Digital, do professor da Universidade de São Paulo (USP) Pablo Ortellado.
A guerra de versões foi em torno da atribuição de responsabilidade pela tragédia, segundo análises das duas iniciativas de monitoramento de redes.
De um lado, pessoas criticavam o governo de Michel Temer e defensores de políticas de austeridade por reduções em verbas para cultura e educação. De outro, grupos acusavam os governos Lula e Dilma de priorizar pautas culturais que os críticos consideravam ser “ideológicas”.
Segundo os analistas, a questão da preservação da cultura não era um assunto prioritário até agora nas discussões eleitorais na internet. E também não era fora dela: apenas 2 dos 13 programas dos presidenciáveis citam museus em suas propostas.
No entanto, a questão partidária começou a ser levantada pelos grupos mais polarizados logo após o incêndio, com militantes e políticos de diversos partidos criticando os adversários. “Assim como em todos os debates, a polarização acontece quase imediatamente”, explica o linguista Lucas Calil, pesquisador da FGV / DAPP e um dos que trabalharam no estudo.
Grande comoção
“O valor simbólico dessa perda é enorme, é muito traumático. É um equipamento tem uma relação direta com a história do Brasil”, diz Marco Ruediger, diretor de Análise de Políticas Públicas da DAPP-FGV. “O incêndio simbolizou para as pessoas uma falta de vontade de construir uma nação em que cultura e história são importantes.”
“As pessoas estão em choque, não apenas pelas perdas materiais da tragédia, mas porque isso é um símbolo da falência na tentativa de construir o país. A perda ali foi imensa. Os políticos vêm atrás só porque sabem que o assunto vai ter mobilização”, afirma Ruediger.
Não houve discussão sobre a importância do museu – como muitas vezes acontece quando o assunto é cultura –, ambos os lados reconheceram o seu valor cultural, histórico e científico.
“A importância do Museu Nacional foi unanimidade”, afirma Calil. “Também houve, em todos os grupos, uma associação entre a tragédia e a atuação da gestão pública.”
As principais narrativas foram em torno do uso de recursos públicos para a área cultural, com a falta de verbas sendo associada à destruição do museu. As diferenças foram na questão de onde o poder público errou – e qual o melhor tipo de gestão para equipamentos públicos.
Enquanto alguns criticavam políticas de austeridade e do discurso de defesa de investimento privado, outros questionam decisões de investimento na área de cultura de governos de esquerda e a administração da UFRJ, que fazia o manejo do museu.
Gastos do poder Judiciário com reajuste de salários também estiveram entre os assuntos mais comentados envolvendo recursos públicos.
Minoria barulhenta
Em uma análise com mais de 953 mil retuítes entre as 19h de domingo e 8h da segunda, a Sala de Democracia Digital constatou que os comentários se dividiam basicamente em três grandes grupos.
Um deles, com a maioria dos usuários (54%), falava de maneira mais geral sobre o descaso da sociedade brasileira com a cultura. Mais identificado com a esquerda, o grupo que responsabilizava o governo Temer era cerca de 28% dos comentários. Outros 14,8% se identificavam mais com a direita e criticavam a política cultural dos governos Dilma e Lula.
Chama a atenção que a forte polarização na verdade esteja sendo puxada por menos da metade das pessoas. “Seguramente é uma minoria barulhenta. Quando a gente mede em geral, não nesse caso específico, as pessoas polarizadas são cerca 15%, mas elas acabam moldando a discussão”, afirma Ortellado.
“Os outros 85% são pessoas que não debatem política frequentemente e são muito impactadas pelos usuários polarizados”, conclui o especialista, cuja análise é voltada para o Facebook.
No Twitter, a discussão partidária foi puxada tanto por celebridades, como o apresentador Marcelo Tas, quanto por políticos. No campo mais à direita, houve diversos políticos culpando o PT e ideias de esquerda.
“Para estes usuários, o presidente Michel Temer deixa de ser o ‘protagonista’ da catástrofe e, em seu lugar, a culpa do incêndio é atribuída aos governos de esquerda que o antecederam”, diz a análise da FGV.
A principal linha de crítica foi em relação às prioridades dos governos Dilma e Lula nos investimentos na área cultural e críticas à Lei Rouanet.
A análise da FGV / DAPP encontrou nesse grupo muitos retuítes de postagens de Marina Silva (Rede), Henrique Meirelles (MDB), Geraldo Alckmin (PSDB) e João Amoêdo (Novo) em que eles lamentam o incêndio, ao mesmo tempo que havia críticas ao uso político do desastre por outros candidatos à Presidência.
Já no campo mais à esquerda, diversos políticos criticaram o governo Temer, entre eles o presidenciável Guilherme Boulos (PSOL), que teve uma dos postagens mais retuitadas. A ex-ministra Gleisi Hoffman (PT) fez um post criticando políticas de austeridade defendidas pelo PSDB e pelo candidato Jair Bolsonaro (PSL).
Bolsonaro foi bastante criticado por pessoas nesse grupo por sua declaração de que extinguiria o ministério da Cultura se fosse eleito.
O relatório da FGV / DAPP também aponta, nesse grupo mais à esquerda, muitas críticas à declaração do prefeito do Rio, Marcelo Crivella, focada na relação do prédio com o império.
Bolsonaro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e Geraldo Alckmin (PSDB) foram os presidenciáveis mais citados no debate no Twitter, segundo a análise da FGV.
O presidente Michel Temer foi citado em 86,8 mil publicações, sendo a maioria deles de reclamações sobre sua gestão – embora tenha havido postagens afirmando que não se trata de um único governo culpado, mas de um histórico de descaso de décadas.
Que tipo de conteúdo?
Segundo Calil, o que mais viraliza são os tuítes “perspicazes”: análises sintéticas com críticas, ironias, nuances. Também faz sucesso o ineditismo: os primeiros a falarem algo relevante que não tinha sido destacado antes.
Enquanto a polarização é puxada por minorias mais ativas, no grupo das pessoas não-alinhadas os conteúdos mais compartilhados não eram necessariamente de grandes influenciadores.
O mais compartilhado, inclusive – com 57 mil repostagens – foi de um usuário que não tinha grande histórico de compartilhamentos. Ele falava sobre a diversidade de itens no acervo atingido pelo incêndio. “Em um primeiro momento, o mais compartilhado são as opiniões e análises pessoais dos usuários”, explica Calil.
“Depois, principalmente em situações de luto e de tragédia como essa, há o conteúdo com um componente de identificação, com aspectos afetivos.”
São os relatos de pessoas emocionadas com tudo o que se perdeu, lembranças de quem esteve no local, etc. Em um terceiro momento, mais no dia seguinte, os conteúdos jornalísticos passam a ser postados com mais força.
Nesse grupo de pessoas não tão alinhadas com um lado ou outro também houve reações negativas ao uso do incêndio como argumento em questões partidárias.
“Não sei se foi endereçado aos políticos, mas de fato havia uma grande parte das atividades com a visão de que a tragédia tem mais de um responsável, um pensamento de responsabilização coletiva”, diz Calil.
A análise do Facebook no Monitor do Debate Político no Meio Digital não conseguiu captar esse tipo de tendência, pois é focada em atividade das páginas, não dos usuários. “O Facebook não nos deixa mais monitorar os perfis individuais, e as páginas são mesmo mais polarizadas”, explica Ortellado. “Mas observei com o meu perfil pessoal que havia uma rejeição da exploração política do que aconteceu.”
“Há uma indignação que as pessoas têm com o rumo do Brasil que está tomando. Falta norte, falta projeto, e os candidatos querendo partidarizar pode ter um efeito de desencanto. De dar uma certeza de que os políticos não as representam”, afirma Marco Ruediger, da DAPP-FGV.
Ortellado diz que, apesar da discussão acirrada, é improvável que as discussões nas redes sociais levem as pessoas a questionar o posicionamento que já assumiram em relação ao assunto.
“O que essas páginas fazem é reinterpretar o fato do dia à luz de seus posicionamentos. É traduzi-los de maneira que reafirme a visão de mundo que as pessoas já têm, assim elas podem ficar confortáveis na posição que já estão“, afirma Pablo Ortellado. “É por isso que esse tipo de debate é completamente infrutífero.”
Pessoas reais, informações falsas
Para analisar o conteúdo da disputa, a Sala de Democracia Digital limpou de sua pesquisa todos as postagens feitas por robôs – e constatou que o índice de contas automatizadas tentando influenciar o debate foi baixo: menos de 0,5% do total.
“Os robôs normalmente usam agendas, propostas e discussões cotidianas. É difícil participarem de um debate que engaja voluntariamente muitas pessoas com um fato novo, precisam de um direcionamento que demanda planejamento”, afirma Calil.
O Monitor do Debate Político no Meio Digital faz a análise centrada em centenas de páginas relevantes no Facebook, portanto perfis individuais de robôs que atuam espalhando comentários em diversos locais também não entram em sua análise.
Embora relativamente livre de robôs, o debate não ficou livre de informações falsas, como aponta um segundo estudo da FGV / DAPP sobre a discussão.
A Agência Lupa, que é parceira da instituição na iniciativa Sala de Democracia Digital, checou as informações de uma mensagem que circulava no WhatsApp sobre valores arrecadados por projetos na Lei Rouanet.
Dos 14 mencionados na corrente, que citava propostas autorizadas pelo MinC para captar recursos junto à iniciativa privada, oito jamais conseguiram arrecadar as verbas aprovadas. A Lupa também checou uma lista que circulava com itens que estariam no Museu Nacional e descobriu que dez dos artefatos mencionados não faziam parte do acervo.
Ainda não há dados para dizer o quanto essa mobilização vai durar ou como vai afetar a discussão política fora das redes nas próximas semanas. Mas uma das possibilidades é que se fale mais de cultura.
“O prejuízo foi tão grande, mobilizou tanto, que pode forçar esse assunto a ser levado em consideração no debate eleitoral. Mas não deve ser suficiente pra dar centralidade“, diz Ortellado.
Ciberia // BBC