Emma Rao passou quase três anos sob o “esquema 966”, famoso na China: trabalhava das 9h da manhã às 9h da noite, seis dias por semana. Nascida em Nanjing, Rao se mudou ao polo financeiro de Xangai cerca de cinco anos atrás, para trabalhar em uma multinacional farmacêutica. O trabalho rapidamente passou a dominar a vida dela.
“Eu estava quase deprimida”, conta. “Não tinha vida pessoal.”
Depois de sua jornada de trabalho, que muitas vezes incluía horas extras, ela tinha um pequeno intervalo para comer, tomar banho e dormir — mas o sono era frequentemente sacrificado para que ela tivesse algum tempo de vida pessoal. Rao costumava ficar acordada até depois da meia-noite surfando na internet, lendo o noticiário e assistindo a vídeos.
Rao estava fazendo o que os chineses chamam de “bàofùxìng áoyè”, uma espécie de “procrastinação de vingança da hora de dormir” em que as pessoas ficam acordadas até tarde como “forma de retaliação” — ideia que se espalhou rapidamente pelo Twitter em junho, depois de uma postagem da jornalista Daphne K Lee.
Ela descreveu o fenômeno como “pessoas que não têm muito controle sobre sua vida diurna recusando-se a ir dormir cedo, para ganhar alguma sensação de liberdade durante a noite”.
O tuíte ressoou com muita gente. Em uma resposta que ganhou 4,5 mil curtidas, o usuário de Twitter Kenneth Kwok escreveu: “(Fico) geralmente das 8h às 20h no escritório, são 22h quando chego em casa, janto e tomo banho, e provavelmente não vou só dormir e repetir a mesma rotina. Algumas horas de tempo pessoal é necessário para sobreviver.”
Não se sabe ao certo a origem do termo chinês. A menção mais antiga encontrada pela reportagem foi em um post de blog datado de novembro de 2018, mas provavelmente há anteriores. O autor do post (um homem da província de Guangdong) escreveu que, durante a jornada de trabalho, ele “pertencia a outras pessoas” e que só conseguia “encontrar-se a si mesmo” quando chegava em casa e deitava.
Essa “vingança” é triste, ele escreveu, porque cobra um preço de sua saúde, mas também “ótima”, por lhe dar um pouco de liberdade.
A expressão é popular na China, mas o fenômeno que descreve é provavelmente bem mais amplo, em tempos nos quais trabalhadores exaustos do mundo inteiro adiam o sono para reivindicar um pouco de tempo para si — mesmo sabendo que isso pode prejudicar sua saúde.
Limites tênues
Já faz tempo que especialistas advertem que a escassez de tempo de sono é uma epidemia global, mas ignorada, de saúde pública. A pesquisa Philips Global Sleep de 2019, que fez mais de 11 mil entrevistas em 12 países, mostrou que 62% dos adultos pesquisados sentem que não dormem o suficiente — o fazem por em média 6,8 horas nos dias de semana, menos do que as 8 horas recomendadas por especialistas.
As pessoas citaram diversos motivos para o sono curto, incluindo estresse e seu ambiente doméstico, mas 37% dos entrevistados disseram que a culpa é de jornadas caóticas de trabalho ou de estudo.
Na China, uma pesquisa nacional de 2018 apontou que 60% das pessoas nascidas depois dos anos 1990 não dormiam o bastante, principalmente as que viviam em cidades grandes.
As empresas de tecnologia que criaram a cultura do 966 (das 9h às 9h, seis dias na semana) tendem a estar sediadas nas grandes cidades, e suas práticas influenciaram outros setores. Um relatório recente da emissora estatal CCTV e do Escritório Nacional de Estatísticas apontou que um trabalhador chinês típico tem apenas 2,42 horas livres por dia, quando não está trabalhando nem dormindo — uma redução de 25 minutos em relação ao ano anterior.
Gu Bing, 33, diretora criativa de uma agência digital de Xangai, costuma trabalhar até tarde e acha que dorme cedo quando vai para a cama antes das 2h da manhã. “Mesmo que eu fique cansada no dia seguinte, não quero dormir cedo”, diz.
Gu gostava mais das noites longas quando tinha 20 e poucos anos e agora pensa em adotar hábitos de sono mais “normais”. No entanto, “eu realmente preciso daquelas horas (à noite). Quero ser saudável, mas eles (seus empregados) roubaram meu tempo. Quero pegar meu tempo de volta.”
Para além da longa jornada no trabalho, outra parte do problema é que as pessoas têm cada vez mais dificuldade em traçar limites entre as vidas profissional e pessoal, opina Ciara Kelly, que ensina psicologia do trabalho na Universidade de Sheffield (Reino Unido). Por conta de e-mails e mensagens instantâneas, empregados estão sempre acessíveis. “Isso dá a sensação de que estamos ‘sempre trabalhando’, porque o trabalho pode nos chamar a qualquer momento”, diz.
Jimmy Mo, 28, analista de uma desenvolvedora de games na metrópole chinesa de Guangzhou, descobriu que é uma faca de dois gumes combinar sua paixão por videogames com o trabalho.
“Meu trabalho é também meu hobby. Adoro sacrificar meu tempo de lazer por ele”, conta, explicando que é exigido dele que jogue diferentes jogos fora de seu horário de trabalho, além de fazer cursos para melhorar suas habilidades. Para acomodar também seus hobbies de ioga e canto, ele geralmente não vai deitar antes das 2h da manhã.
Ele sabe que o sono insuficiente pode acabar afetando sua saúde, e que poderia se sentir melhor se dormisse mais, mas se sente pressionado a fazer mais e mais.
Embora possam se ressentir de o trabalho “espremer” seu tempo de lazer, reduzir o sono provavelmente não é a melhor vingança contra isso. A privação do sono, principalmente a de longo prazo, causa diversos efeitos nocivos, tanto físicos quanto mentais.
No livro Por que nós dormimos – A nova ciência do sono e do sonho, o neurocientista Matthew Walker vai direto ao ponto: “Quanto menos você dorme, menor será sua vida”. E as pessoas, em geral, sabem disso: todos os entrevistados para esta reportagem sentiam que seus padrões de sono eram pouco saudáveis — mas mesmo assim ficavam acordados até tarde.
A psicologia pode explicar por que as pessoas escolhem tempo de lazer sobre o sono. Um crescente conjunto de evidências aponta para a necessidade de termos tempo livre das pressões do trabalho, sob risco de excesso de estresse e “burnout”.
Acontece que “uma das formas mais importantes de se recuperar do trabalho é pelo sono. Mas o sono é afetado por quão bem conseguimos nos desconectar“, explica Kelly, da Universidade de Sheffield.
É importante, diz ela, ter tempo livre quando conseguimos nos distanciar mentalmente do trabalho, o que explica por que as pessoas estão dispostas a sacrificar o sono pelo lazer noturno.
“As pessoas ficam presas em um paradoxo quando não conseguem se desligar do trabalho antes de ir para a cama, e isso provavelmente afeta seu sono negativamente“, prossegue Kelly.
A solução real, ela afirma, é garantir que as pessoas de fato tenham tempo para atividades que ajudem-nas a desligar. Mas isso, em geral, não é algo que funcionários consigam por conta própria.
Heejung Chung, socióloga do trabalho na Universidade de Kent (Reino Unido) e defensora por mais flexibilidade laboral, vê a prática de sacrificar o sono como culpa dos empregadores. E combater isso beneficiaria os empregados, mas também criaria um “ambiente de trabalho mais saudável e eficiente”, argumenta.
“É, na verdade, uma iniciativa de produtividade”, defende. “As pessoas precisam de tempo para relaxar. Trabalhadores precisam fazer outras coisas que não só trabalho. É um comportamento de risco fazer apenas uma coisa.”
Flexibilidade
Desde a pandemia, empresas em muitos países implementaram políticas de home office, introduzindo mais flexibilidade nas vidas profissionais mas também, em alguns casos, mais dificuldade em separar as barreiras já tênues entre trabalho e tempo pessoal. Não está claro, ainda, como o cenário vai impactar esses trabalhadores que já abdicam do sono para ter algum lazer.
Chung acredita que mudanças genuínas dependerão de um novo rumo institucional para muitas empresas. “É difícil para indivíduos reagir (a sua situação empregatícia)”, explica. A despeito disso, ela aconselha funcionários a conversar com colegas e coletivamente abordar a chefia, levando evidências do dia a dia, caso queiram pedir mudanças.
No entanto, é pouco provável que isso aconteça na China. Na realidade, um relatório sugere que as empresas estão pedindo cada vez mais horas extras dos funcionários, na tentativa de reduzir as perdas causadas pela covid-19.
Krista Pederson, consultora que trabalha com multinacionais e corporações chinesas em Pequim, diz ter observado essa tendência. E empresas chinesas veem sua cultura de trabalho como uma vantagem sobre mercados como EUA e Europa, onde as pessoas tendem a trabalhar menos horas: “Elas sabem que têm trabalhadores dedicados que farão o que for necessário para estar na dianteira, incluindo trabalhar o tempo todo”.
Com uma cultura de trabalho tão exigente, empregados continuarão a enfrentar o problema de uma forma que funcione para eles. Apesar de permanecer ativa desde o amanhecer até de madrugada, Gu Bing adora seu trabalho e desfruta de seu pouco tempo livre.
“Às vezes, acho que a noite é perfeita, bonita até”, diz. “Meus amigos e eu conversamos à noite e às vezes escrevemos canções juntos. É silencioso e calmo.”
E os mais sortudos têm a opção de mudar de emprego, que é o que Emma Rao fez: trocou seu “emprego 996” por um que fosse um pouco menos exigente. Mas ela descobriu que é difícil se livrar de antigos hábitos.
“É uma vingança”, diz ela sobre ficar acordada até tarde da noite. “Para recuperar um pouco de tempo para si.”
// BBC