O muro de Berlim não havia completado um ano de sua construção e a Alemanha era o epicentro simbólico da guerra fria quando Christiane Vera Felscherinow nasceu, em 20 de maio de 1962, na cidade de Hamburgo – a cerca de 288 quilômetros da então dividida capital alemã. Hamburgo fazia parte da Republica Federal da Alemanha, ou Alemanha Ocidental, o lado “capitalista” do muro.

Tendo o segundo maior porto da Europa e sendo a segunda maior cidade do país, à época Hamburgo vivia um efervescente e complicado momento sociocultural, com a pobreza e a criminalidade em alta, ao redor de uma forte e interessante cena musical para as insurgentes bandas de rock de então.

Uma das bandas que mais se apresentaram na cidade durante o início dos anos 1960 foram os Beatles, então somente um esforçado e talentoso novo grupo do noroeste da Inglaterra.

A banda se apresentaria em Hamburgo entre 1960 e o fim de 1962 mais de 250 vezes – quando Christiane completou 7 meses de idade, em dezembro de 1962, os quatro rapazes de Liverpool tocaram por lá pela última vez antes do sucesso, deixando Hamburgo para ganharam o mundo nos meses seguintes.

Curiosamente, a música teria um papel importante na vida de Christiane, mas a herança mais direta que se poderia supor de sua infância em Hamburgo seria o submundo da violência, da criminalidade e das drogas que tomavam conta de sua cidade natal quando os Beatles se apresentavam por lá – e quando ela nasceu.

A jovem alemã cresceria rumo a um destino especialmente precoce, marcado pelas drogas e pela prostituição antes mesmo de completar 14 anos. Outra marca de seu destino, porém seria o sucesso de seu relato, contando justamente essa dura história de infância e adolescência, no livro autobiográfico Eu, Christiane F., 13 anos, drogada, prostituída.

Trajetória

O livro, lançado há 40 anos, venderia milhões de cópias instantaneamente, chocando e fascinando não só a austera sociedade alemã do final dos anos 1970, como a todo o mundo, contando quatro anos da vida de Christiane – dos 12 aos 15 anos de idade – atravessados entre o vício em heroína e outras drogas e a prostituição infantil, e revelando a dura realidade das ruas da Berlim ocidental da época, onde ela vivia.

Três anos depois de seu lançamento, em 1981 a história seria adaptado para um filme, estrelado por David Bowie, também alcançando vasto sucesso e transformando a personagem de Christiane em um ícone do aspecto pop que as drogas podem trazer, assim como do lado sombrio – e real – que sua história revelava sobre a juventude do mundo todo.

Christiane se tornava ao mesmo tempo uma junkie star (algo como “estrela decadente” em português) e uma bandeira sobre o mal das drogas; uma estrela e uma denúncia.

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A atriz Natja Brunckhorst como Christiane em cena do filme baseado no livro

Por trás de toda essa incrível e assombrosa trajetória, havia, no entanto, uma pessoa – uma menina, passando por tais imensas dores do crescimento sob os holofotes do mundo, lutando contra o vício e as curvas de sua própria história, migrando violentamente da pobreza extrema e da dureza das ruas de Berlim para a fama e a riqueza sem qualquer preparo ou apoio.

Quando livro foi lançado, Christiane tinha somente 16 anos – quando o filme chegou às telas, ela tinha 19. Ninguém acreditava, então, que aquela jovem perdida sobreviveria muitos anos – e até hoje não acreditam que ela ainda está viva.

Os 40 anos de seu histórico relato (lançado em 1978, com mais de 5 milhões de cópias vendidas desde então) são, no entanto, também símbolo de seus 56 anos de vida, a serem completados em maio próximo. Christiane Vera Felscherinow segue viva, ainda lutando contra as drogas, vivendo dos direitos de sua história, com uma das mais famosas histórias de vício em todo o mundo.

“Eu sou e vou continuar sendo uma junkie star”, ela diz, a respeito do fato das pessoas até hoje lhe pedirem autógrafos e fotos.

Quando tinha somente 6 anos de idade sua família se mudou para Berlim, e foi aí que tudo desmoronou. Filha de um pai abusivo e de uma mãe negligente, com a separação de seus pais Christiane passou a se aventurar pelas pobres e perigosas ruas da cidade. Antes dos dez anos já estava envolvida em pequenos furtos e começando a beber.

Aos 12 anos consumia haxixe e LSD, e conheceu Detlef, seu namorado de então (assim como diversos outros personagens imortalizados no livro) na boate Sound. Aos 13, descobriu a heroína em um show de David Bowie, e já se prostituía. Aos 15, encontrou-se com os jornalistas Kai Herrmann e Horst Rieck e com eles dividiu sua história de vida. O livro seria desenvolvido em uma parceria entre os jornalistas e Christiane.

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Capa da versão original de Christiane F. – 13 anos, drogada e prostituída

Drogas

O livro revelou as experiências de uma geração na Alemanha que, em muito, refletia as experiências de diversos jovens pelo mundo. Ela e outros adolescentes frequentavam a estação Bahnhof Zoo, próxima ao zoológico, na região mais decadente de Berlim, onde se prostituíam, comprovam, vendiam e consumiam drogas.

O estilo cru e direto com que o livro foi escrito – a força da franca e fluente exposição de uma vivência tão dura e intensa por uma criança, como que revelando um lado real, assustador inclemente e especialmente próximo da juventude de modo geral – não só ajudou no sucesso da publicação como fez de Christiane F. um importante documento sobre o tema.

Desde o lançamento e até hoje, Christiane admite que jamais esteve totalmente longe das drogas – entre períodos limpos e recaídas intensas, em 2013 ela confirmou que seguia bebendo, fumando maconha e lutando contra o vício em metadona. Mesmo se livrando eventualmente da heroína, o álcool e a cocaína seguiram como seus parceiros de vida – ela confirma que jamais quis de fato desistir das drogas.

“Eu não conheço nada além disso”, afirmou há cinco anos, quando do lançamento de seu último livro, Eu, Christiane F., a vida apesar de tudo – espécie de segunda biografia, em continuação do primeiro, lançada em 2013.

“Mais que nossas dores e vícios”

É difícil encontrar notícias a seu respeito depois de 2013, quando ganhou a atenção da mídia novamente por conta do lançamento, mas não é difícil supor que sua vida siga sendo de luta e, em paradoxo, resignação diante do vício – talvez com o aniversário de seu primeiro livro ela volte a atualizar sua história. Cinco anos atrás, ela dizia que ainda bebia e fumava maconha, pois, sem isso, “a vida na Terra não seria suportável”.

Depois do sucesso, Christiane contraiu hepatite C por uma seringa compartilhada, no início dos anos 1980, teve cirrose hepática, foi presa algumas vezes, teve um filho em 1996, perdeu, reconquistou e novamente perdeu a custódia de sua criança.

Na abertura de seu último livro, ela diz: “Eu morrerei em breve. Eu sei disso. Mas eu não deixei de fazer nada em minha vida. Estou bem com isso. Então, eu não recomendaria: essa não é a melhor vida para se viver, mas é a minha vida”.

E, sendo sua essa vida, ela luta para não ser aprisionada na personagem que foi criada no imaginário coletivo a partir do que viveu e contou.

“O que mais me incomoda é essa coisa sobre Christiane F. ‘Será que ela está limpa agora, ou não?’. Como se não houvesse nada mais para ser dito sobre mim. E eu não consigo ficar limpa. É o que todos sempre esperaram de mim. Os médicos reclamam, mas eu tenho uma vida, no fim das contas”, ela diz, expondo o paradoxo a respeito da grande vivência de sua história ser também seu maior problema.

E é partir de tal paradoxo que sua vida se constituiu, para o mal e para o bem. Talvez não reconhecer a ambiguidade do uso de drogas em geral seja um dos mais graves e alienantes preconceitos ao se pensar sobre o tema – e que a história de Christiane ajuda a iluminar.

Para além da questão policial e de sua relação direta com a violência (provocada não pelos consumidores, mas sim pela proibição e falta de regulação), as drogas podem ser, para muitos, um alento, algo que lhes permite atravessar as contrariedades que a vida sempre tem. Seu perigo está justamente no imenso prazer e alívio que podem trazer – no quanto elas podem fazer bem, enquanto ao mesmo tempo podem destruir a vida de quem as usa em excesso.

Assim, uma das mais famosas viciadas em todos os tempos admitiu, em 2013, não carregar nenhum arrependimento. “A heroína é parte de quem eu sou, como poderia me arrepender? Ela me fez rica, me fez famosa. Eu viajei no jatinho do David Bowie, tudo por causa dela”. Christiane F. se tornou uma referência para a moda, a cultura pop e jovem, e um personagem importante no debate sobre as drogas e sua época.

Por trás da personagem, porém, Christiane Vera Felscherinow seguiu e segue sua vida lutando contra o vício, tentando ter uma vida que não se defina somente pelas substâncias que ingeriu e ingere, mas sim por quem ela é – uma mulher corajosa e forte, que decidiu oferecer ao mundo as próprias feridas para que, quem sabe, outras como ela não precisem atravessar o mesmo calvário pesado.

Como diz no livro, a vida, apesar de tudo, pode ser sempre mais que dores e vícios.

(dv)

Ciberia // Hypeness

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