É inacreditável. Em uma manhã ensolarada de Buenos Aires, um diretor da AFA, sem ter mais o que fazer resolveu puxar o telefone do gancho e discar o número de um modesto time que habita a quinta divisão. O motivo: exigir que o clube endireite a marcação do campo, que mais parece um delírio trigonométrico.
O clube em questão é o Liniers, proprietário do acanhado e insólito estádio Juan Antonio Arias, capacidade para 5 mil pessoas, que fica em San Justo, no brioso partido de LA MATANZA, na Grande Buenos Aires.
A Associação de Futebol Argentina subitamente decidiu que não era mais possível admitir um estádio em que uma trave não fica exatamente na frente da outra e um lado do campo é seis metros mais largo de que o oposto.
O detalhe é que a cancha está assim desde a inauguração, há quase 30 anos. Como as linhas não se endireitaram naturalmente com o passar das décadas, a AFA resolveu mostrar agilidade.
O Liniers já começou as obras para voltar a receber jogos no seu estádio, que também abriga partidas de outros times do descenso argentino.
Fundado originalmente no bairro que lhe dá nome, o Liniers foi desalojado de sua primeira casa, na Ciudadela Norte da capital, e precisou comprar uns hectares de terra fora dos limites da cidade, seguindo a rotina de migração de vários clubes porteños.
Segundo o próprio presidente do clube, Marcelo Gómez, falou para o La Nación, eles obviamente tinham noção de que o campo tinha uma disposição geométrica peculiar.
Mas como outros compromissos se mostravam mais urgentes, não viam problema em ter uma goleira praticamente virada para a lateral ou provocar labirintite em algum ponta desavisado correndo gramado a fora.
Porque é bem isto: se um goleiro chuta reto exatamente do seu gol, alguma coisa acontece no meio do caminho e a bola sai pela linha de fundo do arco posto, na linha da pequena área.
Há duas versões para a libertinagem métrica no campo do Liniers.
Uma conta que foi uma tentativa de se aproveitar as partes mais planas do terreno adquirido nos anos 1980, enquanto outra sugere que o campo era torto para que o nascer e o por do sol não atrapalhasse os goleiros nas loucas jornadas do ascenso castelhano.
O presidente lembra que vários cruzamentos costumavam parar dentro do gol, já que os goleiros não tinham qualquer referência, perdidos naquele emaranhado de ângulos lascivos.
E que um tal Silvio Fuentes, canhoto que defendeu o clube, sabedor das peculiaridades da cancha, se lavava de tanto marcar gols olímpicos.
Após todos estes argumentos, impossível encontrar motivos razoáveis para alterar a alma enviesada do estádio, que no mundo do ascenso era simpaticamente conhecido como “la cancha de los arcos torcidos”, algo como “o campo das traves tortas.”
Perde o futebol, perde a poesia. Tudo em nome da frígida perfeição matemática e sua palmatória borrifadora de cal.
O valeroso Liniers revelou para o mundo nomes do porte de Blas Giunta, Pablo Michelini e El Ogro Fabiani, mas não fez uso da assimetria de sua cancha para percorrer caminhos mais longos: jamais disputou sequer a segunda divisão.
Seu habitat é a quarta divisão, que frequentou por 51 temporadas e para onde tenta retornar agora – ocupa a segunda colocação e está engatilhado para fazer sua camisa celeste retomar o rumo e voltar à categoria que frequentava até o semestre passado.
Isso se o imperialismo das linhas retas e o statos quo cartesiano permitirem.
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