Após mais de um mês do assassinato da vereadora Marielle Franco, do PSOL do Rio, as investigações apontam para envolvimento de milícias no crime. É o que afirmou o ministro da Segurança Pública Raul Jungmann, nesta segunda-feira (16).
“As investigações avançam. Estão partindo de um grande conjunto de hipóteses e afunilando. E uma das possibilidades que têm crescido é que seja um crime ligado às milícias“, disse o ministro.
O combate à violência, especialmente a cometida por policiais e por milícias, era uma das principais causas da vereadora. Marielle, e seu motorista, Anderson Gomes, foram mortos na noite de 14 de março, na região central da cidade.
O carro dos criminosos emparelhou com o da vereadora, que deixava um evento, e os autores do crime atiraram ao menos 9 vezes contra o veículo.
Mas, afinal, o que são milícias e o que fazer quando o criminoso é agente do Estado?
“Patrulhas de Segurança Informais”
As milícias são uma face peculiar da violência que atinge o Estado no Rio de Janeiro: policiais, ex-policiais, bombeiros, guardas de presídios e agentes de segurança começaram, aos poucos, a ocupar bairros pobres como ‘patrulhas de segurança’ informais. Pareciam oferecer um serviço às comunidades oferecendo algum tipo de vigilância onde normalmente o Estado não chega.
“Eles eram tolerados pelo governo e a potencial ameaça que representam à segurança pública foi ignorada por estudiosos”, diz o especialista em segurança e desenvolvimento Robert Muggah, criador do Instituto Igarapé e professor afiliado da Universidade de Oxford.
Aos poucos, no entanto, começaram a exercer controle sobre esses territórios. As milícias funcionam como uma máfia: cobram dos moradores pela suposta proteção que oferecem e por serviços que o Estado deveria fornecer. Têm transporte por vans, venda de botijão de gás e até sistemas de internet e TV a cabo piratas. Corrompem agentes do poder público e atacam inimigos com violência.
Investigações ligaram as milícias à pelo menos seis execuções politicamente motivadas antes das eleições de 2016.
Embora não haja conclusões sobre o assassinato de Marielle Franco, o coordenador criminal do Ministério Público Federal no Rio de Janeiro, o procurador José Maria Panoeiro, disse à BBC que uma análise do caso aponta para o possível envolvimento de policiais ou agentes milicianos no crime.
Um problema maior que o tráfico
O problema existe desde os anos 1970, mas se intensificou nos últimos vinte anos. Em 1997, só uma comunidade do Rio era dominada por milicianos. Em 2008, a Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro já listava 161 comunidades ocupada por milícias na região metropolitana da capital carioca.
Hoje, ao menos em 165 favelas estão sob controle de milicianos, que chegam a dominar bairros inteiros. No início do ano, o Ministério Público Estadual do Rio investigava a atuação de milícias que teriam tomado controle de 21 estações de ônibus do BRT na zona oeste da capital.
Para o sociólogo José Cláudio Souza Alves, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, as milícias já se tornaram um problema maior que o tráfico no Rio.
A atitude do público em relação à milícia inicialmente era de simpatia. “Eles eram vistos pela população como uma opção bem melhor do que os traficantes, como uma quase legítima forma de ‘autodefesa comunitária'”, explica Muggah.
Milícias e o Poder Público
Em uma entrevista à Rede Globo em 2006, o então candidato a prefeito Eduardo Paes elogiou a ação da milícia em Jacarepaguá e disse que “polícia mineira” [gíria para milícia] era bem melhor que o tráfico de drogas.
O ex-governador Sérgio Cabral, hoje preso por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e participação em organização criminosa, também chegou a se encontrar com líderes milicianos famosos.
Em 2008, o vereador Jerônimo Guimarães Filho e seu irmão e deputado estadual Natalino José Guimarães foram presos sob a acusação de operar uma das milícias mais famosas do rio, a Liga da Justiça.
“As milícias conseguiram se infiltrar com sucesso em parte do governo municipal e estadual”, diz Muggah. Segundo ele, a opinião pública só começou a mudar depois de episódios altamente visíveis de violência, como o caso Batan – quando três jornalistas do jornal O Dia foram torturados por milicianos na favela do Batan, no Realengo.
“A revolta do público depois do episódio abriu um caminho para começar a lidar com o problema”, explica o especialista. “Políticos prontamente começaram a distanciar sua imagem pública dos grupos e [no mês seguinte] foi instaurada uma CPI das Milícias na Assembleia Legislativa do Rio.”
As milícias não são a única situação em que os criminosos são agentes do Estado: crimes cometidos por policiais que não necessariamente estão ligados a esses grupos são outro grande problema no Rio de Janeiro.
Segundo um relatório da Anistia Internacional com dados do Instituto de Segurança Pública, as polícias civil e militar foram responsáveis por 1,1 mil homicídios no Estado do Rio em 2017. Isso é equivalente a 20% das morte intencionais violentas no Rio.
Mas afinal, o que é possível fazer quando o crime é cometido por pessoas com uma ligação tão próxima ao Estado – muitas vezes trabalhando para ele?
Federalizar o combate
Uma das ideias é federalizar o combate a esse tipo de crime. Um projeto de Lei que aguarda votação na Câmara dos Deputados propõe justamente isso.
A proposta, já aprovada pelo Senado, propõe que a Polícia Federal se responsabilize pelas investigações de “crimes praticados por organizações paramilitares e milícias armadas, quando delas faça parte agente pertencente a órgão de segurança pública estadual.”
Se aprovada, a proposta prevê que casos anteriores à sua aprovação possam ser analisados pela PF.
Atualmente, é possível federalizar crimes contra os direitos humanos, mas é preciso que a Procuradoria Geral da República faça o pedido, que então precisa ser aprovado pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça).
Para Muggah, do Instituto Igarapé, é essencial federalizar as investigações. “A Polícia Civil e a PM dos Estados têm poucos incentivos para agir contra esses grupos. Em alguns casos, as próprias instituições estaduais estão envolvidas em crimes. Em outros, podem temer represálias”, diz Muggah.
Essa também é a posição do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), com sede em São Paulo, que acompanhou a tramitação do projeto de lei. “Temos um sistema com um índice de resolução de mortes violentas muito baixo. É preciso priorizar a resolução dessas mortes violentas, principalmente as cometidas pela polícia”, diz o jurista Cristiano Maronna, presidente da entidade.
“São casos ainda mais graves porque os criminosos se aproveitam de um aparato de força do Estado, que deveria proteger os cidadãos, não violentá-los”, diz Maronna.
Além disso, as relações promíscuas entre políticos e milícias dificultam o combate ao problema nos Estados. A CPI das Milícias, de 2008, apontou em seu relatório final diversas dessas conexões: do deputado Jorge Babu, condenado a 7 anos de prisão em 2010, ao ex-secretário de segurança do Rio Marcelo Itagiba.
Segundo Maronna, um investigador de fora, sem relação com esse grupos estaduais, teria mais chances de conseguir lidar com o problema.
Especialistas ressaltam, porém, que não basta a lei estabelecer competência federal na investigação a esses crimes, é preciso que haja real interesse do governo de investir no combate a milícias.
A intervenção federal foi anunciada pelo governo de Michel Temer como uma disposição da União de tomar para si essa responsabilidade sobre o problema de segurança pública do Estado. Em seu início, no entanto, as operações da intervenção receberam críticas por não se concentrarem no combate aos milicianos.
Há 10 dias, a Polícia Civil do Rio coordenou uma operação contra esse tipo de organização em que prendeu, de uma só vez, 149 pessoas – segundo a polícia, eram todos suspeitos de envolvimento com milícias na zona oeste da cidade.
O Secretário de Segurança Pública do Rio, general Richard Nunes, declarou que outras ações de combate à milícia serão realizadas.
No caso de Marielle, a Polícia Federal chegou a oferecer auxílio nas investigações, mas a Polícia Civil recusou a ajuda em um primeiro momento. Agora, no entanto, a Polícia Federal está cooperando com a Civil na tentativa de solucionar o caso.
Supondo que o combate ao crime fosse de fato federalizado, a Polícia Federal e o Ministério Público Federal teriam condições de arcar com a tarefa? Para os especialistas, é questão de vontade política. “A PF e o MPF têm muito mais recursos [para lidar com as milícias] do que as instituições de segurança estaduais”, afirma Muggah.
“Eles também são mais bem treinados e considerados mais profissionais. Os maiores desafios que iriam enfrentar não são falta de dinheiro ou de capacidade, mas oposição de políticos e policiais corruptos que resistiriam à uma interferência externa em suas redes criminais.”
Procurada pela BBC, a Polícia Federal disse que não se pronunciaria sobre a federalização, por se tratar “de uma questão que compete ao legislativo decidir”.
Melhorar a polícia estadual e regular a segurança privada
Outra medida importante para lidar com as milícias é a punição de policiais estaduais envolvidos com os grupos – quer seja diretamente, quer seja com suporte indireto.
Isso só seria possível com grande vigilância interna e externa sobre a atuação da polícia e uma política de zero tolerância contra a corrupção, segundo Muggah.
Um dos órgãos encarregados desse trabalho é o Ministério Público Estadual. “O MP tem o dever de fazer o controle policial”, diz Cristiano Maronna, do IBCCrim. “Eles deveriam ser cobrados dessa responsabilidade e ter garantidos os recursos e a proteção necessária para a função”, acrescenta Muggah.
O caminho também passa por reduzir os incentivos para que policiais se envolvam com grupos como esses. “É evidente que a força precisa de diversas reformas urgentes. É preciso melhorar os salários e repensar as horas de trabalho para que os policiais não precisem assumir nenhum trabalho adicional”, diz Muggah.
O problema das milícias está diretamente ligado ao processo de privatização das forças de segurança públicas, segundo alguns especialistas – diante do vácuo do Estado, os mais ricos contratam sua própria segurança e os mais pobres ficam à mercê da extorsão de grupos paramilitares.
O antropólogo Luiz Eduardo Soares já descreveu as milícias como uma “degradação metastática” desse processo de privatização. Ou seja, um câncer que aparece em um corpo já doente.
Para Muggah, a melhora na regulação de empresas de segurança privada vai ajudar a combater as milícias e reduzir seu acesso às armas e munições. “Muitas dessas empresas do Rio são operadas por policiais na ativa ou recém-aposentados”, diz ele. “São grupos poucos regulados e monitorados, e ocasionalmente ligados à operações milicianas.”
Ciberia // BBC