O astronauta americano Scott Kelly passou 340 dias orbitando a Terra de março de 2015 a março de 2016, a bordo da Estação Espacial Internacional.
Quando a missão teve início, ele tinha 51 anos e a experiência era considerada de longa duração – definição empregada pela agência espacial americana, a Nasa, para quando um astronauta fica mais de seis meses fora da Terra – o que, por si só, já seria fora do comum.
Mas Scott tem um irmão gêmeo monozigótico – ou seja, geneticamente idêntico. Também astronauta. É um caso único na história da Nasa: dois gêmeos que se tornaram astronautas. Diante dessa peculiaridade, os cientistas da agência decidiram submeter periodicamente tanto Scott quanto seu irmão, Mark – que ficou na Terra – a baterias de exames. A ideia era medir quantitativa e qualitativamente o impacto que uma experiência de longa duração fora do planeta causa no corpo humano.
Os resultados foram publicados nesta quinta-feira. Durante e depois da permanência espacial, Scott apresentou diversos sintomas relacionados a envelhecimento, perda cognitiva, alterações na expressão gênica, mudanças vasculares, diferenças respostas imunológicas e diminuição da acuidade visual.
Mark, que ficou na Terra, não teve nenhum desses efeitos – descartando, portanto, a possibilidade de serem um reflexo natural da idade.
Conforme nota da agência espacial, “os mais relevantes obstáculos para uma missão humana de longa duração são cinco conhecidos perigos: radiação, isolamento e confinamento, distância da Terra, campos gravitacionais alterados e ambientes hostis”. Os irmãos Kelly foram analisados sob cientificamente sob dez critérios, dentro dos campos da fisiologia humana, saúde comportamental, microbiologia e biologia molecular.
No total, foram 27 meses em que ambos foram monitorados, já que os estudos começaram antes da missão e prosseguiram depois – justamente para avaliar quais efeitos da vida espacial foram incorporados pelo corpo de Scott ou quais foram ajustados com o tempo.
Os resultados, publicados pela revista Science, levantam preocupações sobre como os astronautas devem ser preparados para viagens espaciais – sobretudo nos planos futuros para uma missão com humanos até Marte, por exemplo.
De modo simplificado, dá para afirmar que Scott voltou para a Terra mais velho que seu irmão. Pelo menos com sintomas parecidos com os do envelhecimento: comprometimento cognitivo, perda de densidade óssea e até alterações cardiovasculares – como o espessamento da artéria carótida.
Mas as três mais contundentes conclusões da pesquisa, segundo avaliação da Nasa, foram o desencadeamento de mudanças na expressão gênica – ou seja, como os genes funcionam para ativar ou desativar características; a manutenção das condições do sistema imunológico – o que significa que um astronauta responde bem a uma vacina eventualmente necessária em viagem espacial; e um desgaste acentuado nos telômeros, proteção das extremidades dos cromossomos – problema ligado ao envelhecimento.
Em conversa com jornalistas na terça-feira, a pesquisadora Susan Bailey, professora da Universidade Estadual do Colorado, afirmou que “o estudo dos gêmeos é certamente a visão mais abrangente que já tivemos da resposta do corpo humano em um voo espacial”.
“De nossa parte, o maior interesse era a avaliação dos biomarcadores de envelhecimento, especificamente os telômeros”, disse. “Eles podem servir como um biomarcador de envelhecimento acelerado ou de alguns dos riscos de saúde associados, como doença cardiovascular ou câncer.”
Bailey explicou que, no caso de uma viagem espacial, o estresse resultante de “exposições ambientais extremas”, como radiação espacial e microgravidade, contribuem para “acelerar a perda de telômero”.
Ela conta que também foram avaliadas “aberrações cromossômicas”. “Coisas como translocações, rearranjos entre cromossomos ou inversões”, pontuou, ressaltando que tais ocorrências foram “definitivamente elevadas durante o voo espacial”.
Professor da Weill Cornell Medicine, a unidade de pesquisa biomédica da Universidade Cornell, Chris Mason também se deteve sobre os aspectos genéticos. “Observamos uma mudança realmente de grande escala em mais de mil genes”, disse ele, referindo-se ao irmão que permaneceu por um ano no espaço.
“Houve ativação de funções que regulam a resposta a danos e reparos no DNA e, mais notavelmente, um fortalecimento do conjunto de genes envolvidos no sistema imunológico – o que indicou que a defesa do organismo estava em alerta alto, como uma maneira de tentar compreender o novo ambiente.”
Mason usou uma analogia para explicar o ocorrido. “Imagine que uma luz acende em seu DNA quando você liga ou desliga uma função, como uma cozinha cheia de aparelhos. Anteriormente, a cozinha só tinha algumas poucas coisas ligadas. Então, quase todos os eletrodomésticos foram ativados”, comentou. “E isso ocorreu na segunda metade da jornada.”
O pesquisador ressaltou que embora muitas das funções do organismo de Scott tenham retornado à normalidade depois do fim da missão, ainda há desajustes no corpo dele. “Noventa por cento das alterações retornaram à linha de base”, explicou. Mas o sistema imunológico não está funcionando corretamente e a reposição das células – naturalmente feita pelo organismo – também não ocorre da maneira esperada. “Como ele é um homem saudável, provavelmente o corpo se adaptou assim depois que ele voltou”, afirmou.
A pesquisadora Brinda Rana, da Universidade da Califórnia, enumerou outros problemas identificados no organismo do astronauta. “Esta investigação inédita forneceu pistas sobre como um voo espacial de longa duração altera a regulação das moléculas no corpo e a relação dessas mudanças com as mudanças fisiológicas no corpo causadas pelo voo espacial, de questões vasculares a problemas de visão”, disse ela.
“Muitos astronautas desenvolvem um problema de visão que pode ser o resultado de mudanças de fluidos relacionadas à microgravidade. Alterações cardiovasculares semelhantes à aterosclerose também foram observadas.”
Rana acredita que essas questões são “grandes obstáculos fisiológicos” que a Nasa precisa resolver “antes de embarcar em missões espaciais mais longas, como a proposta missão a Marte”. A pesquisa indicou ainda que o ambiente com privação de oxigênio influencia no metabolismo, causando um aumento de inflamações interiores e ainda nos nutrientes do corpo.
Exames de fezes também demonstraram que a jornada espacial interferiu nas proporções das bactérias da flora intestinal de Scott. Pesquisadores da Universidade Northwestern coletaram e analisaram duas amostras fecais do astronauta antes da viagem, quatro durante a jornada espacial e três após o fim da missão. A diversidade das bactérias não mudou – mas a proporção delas, sim.
“Não podemos mandar humanos para Marte sem saber como o voo espacial afeta o corpo, incluindo os micróbios que viajam com os humanos”, afirmou um dos pesquisadores, Fred Turek.
// BBC