Um grupo de cientistas conseguiu reconstituir 38% da parte africana e materna do genoma de Hans Jonathan, um escravo mulato que fugiu da Dinamarca para a Islândia, no início do século XIX.
Hans Jonathan nasceu no final do século XVIII numa colônia da Dinamarca e estava praticamente predestinado a ser um escravo, pois era filho de uma mãe escrava negra.
Mais tarde, foi considerado um herói nacional quando combateu nas guerras napoleônicas na Dinamarca. Mas sua proprietária pôs o caso em tribunal e o juiz o condenou a voltar às colônias. Até que Hans Jonathan conseguiu fugir para a Islândia, tornando-se assim um dos primeiros mulatos a viver no país nórdico.
Quase 200 anos depois da sua morte, uma equipe de cientistas conseguiu reconstituir 38% da metade africana do genoma de Hans Jonathan através da análise genética de 182 descendentes dele.
O estudo foi publicado este mês na Nature. A geneticista Luísa Pereira, do Instituto de Pesquisa e Inovação em Saúde (i3S) da Universidade do Porto, em Portugal, integra a equipe, avança o Público.
Como todos nós, Hans Jonathan recebeu 23 pares de cromossomos: metade da parte da mãe, que era africana, e metade da parte do pai, europeu. “Nas células que deram origem aos seus espermatozoides ocorreu uma divisão chamada ‘meiose’, durante a qual cada par de cromossomos se uniu em certos locais, havendo troca de material genético entre eles, num processo designado de ‘recombinação’”, explica Luísa Pereira.
Foi assim que se originaram “cromossomos códigos de barras com partes paternas intercaladas com partes maternas”. Esses fenômenos de recombinação são aleatórios, pelo que cada um dos espermatozoides de Jonathan tinha um quebra-cabeças de material genético das duas partes diferentes.
“Foi misturada a informação que veio de cada um dos ancestrais. Isso é um fenômeno natural que aumenta a diversidade genética por novas combinações de variantes que foram transmitidas pela mãe e pelo pai”, acrescenta a geneticista.
Assim, a equipe se dedicou a encontrar as partes africanas no genoma de 182 descendentes de Hans Jonathan, ou seja, montar um quebra-cabeças a partir de outro quebra-cabeças.
Os cientistas afirmam que foi relativamente fácil procurar as partes africanas em genomas islandeses. “A parte africana foi mais fácil. É mesmo um quebra-cabeças com peças africanas espalhadas por várias pessoas”, diz a cientista.
Então, deu-se a reconstituição de metade de um genoma de uma pessoa que viveu há cerca de 200 anos pela primeira vez, através da análise de material biológico dos seus descendentes. Além disso, foi possível saber qual a origem geográfica da mãe de Hans Jonathan, Emilia Regina.
O mais provável, escreve o jornal, é que Emilia Regina seja descendente de africanos de uma região que se estende do Benin, passa pela Nigéria e vai até Camarões.
“Sabe-se que antes de Hans Jonathan não houve nenhum mulato na Islândia”, refere Luísa Pereira. Só no século XX começaram a aparecer africanos no país, fazendo com que as pessoas de pele escura se tornassem cada vez mais comuns na Islândia.
A cientista afirma já ter usado o mesmo método do estudo para conseguir mapear genes que nos protegem contra certas doenças, como a febre da dengue na população de Cuba. Mas, para Luís, o importante é destacar o fator antropológico da história.
“Foi um momento de transição histórica e esse indivíduo representa a capacidade de alguém que nasceu escravo conseguir obter sua liberdade, ser integrado em outro país, ter descendentes de uma mulher islandesa e ser aceito pela comunidade”, conclui.
Ciberia // ZAP