Desde 1940, o Código Penal permite o aborto em caso de estupro. Ainda assim, o recente caso da menina de 10 anos vítima de estupro mostra como fazer cumprir um direito das mulheres pode não ser simples.
Moradora do Espírito Santo, a criança foi vítima de abusos praticados por um tio e começou a reclamar de dores no abdômen. Após a fonte do incômodo ser diagnosticada como uma gravidez, o Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes se negou a cumprir o direito legal da vítima em interromper sua gravidez. A criança, então, precisou viajar para Recife para conseguir realizar o aborto.
Antes disso, todavia, ela e sua família foram vítimas de assédio por parte de militantes antiaborto e a família recebeu visita de assessores da ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, e do deputado estadual Lorenzo Pazolini (Republicanos). De acordo com reportagem da revista piauí, o objetivo foi demover a criança e sua família de seu desejo de interromper a gravidez.
“Apesar do aborto ser permitido no Brasil desde 1940, ele não foi um direito que de fato saiu do papel por resistência de grupos ultraconservadores que se aliam para impedir a implementação plena dos direitos das mulheres no Brasil. E, em situações de crise, são os primeiros direitos a serem negociados”, afirma em entrevista à Sputnik Brasil a doutoranda em direito pela Universidade de Victoria, no Canadá, Tamara Gonçalves.
Integrante do Comitê Latino Americano e Caribenho pela Defesa dos Direitos da Mulher, Gonçalves destaca que, em 2016, o Brasil tinha 250 serviços de saúde especializados em violência contra mulher e que apenas 37 destes locais realizavam aborto legal quando foi realizado o levantamento. Para a pesquisadora, essa dificuldade em acessar o aborto legal é uma prática deliberada.
Enquanto viajava rumo ao Recife, a menina vítima do abuso que ganhou manchetes no Brasil teve seu nome e endereço divulgados pela extremista Sara Giromini, conhecida como Sara Winter e ex-assessora de Damares.
O hospital onde ela realizaria o aborto também foi revelado por Giromini e o local foi cercado por manifestantes que tentaram impedir que a menina tivesse acesso ao seu direito. Ainda de acordo com a revista piauí, a movimentação forçou a menina e a sua avó a entrarem na unidade hospitalar pelo porta-malas de um carro.
A presidente do Movimento Brasil sem Aborto, Lenise Garcia, não acredita que houve abuso por parte dos ativistas que cercaram o Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros, em Recife, “porque se tratava de salvar uma vida”.
Ela avalia que o único excesso cometido foi a divulgação da identidade da garota vítima de violência sexual. Para Garcia, a menina poderia levar à gravidez “se não a termo, até o momento em que se pudesse fazer uma cesárea”.
“A minha avaliação é a seguinte: ela acabou sendo duplamente vítima. Foi vítima do estupro e depois foi vítima do aborto, do modo como foi feito. Sem dúvida, a primeira vítima a criança de 5 meses que morreu, mas outra criança de 10 anos também é vítima nessa situação toda”, diz a presidente Movimento Brasil sem Aborto à Sputnik Brasil.
Maior parte das vítimas conhece o abusador
O Brasil registrou 180 estupros por dia em 2018, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Este número, contudo, é apenas uma fração do real já que pesquisa do Ministério da Justiça de 2013 indicou que apenas 7,5% das vítimas de violência sexual notificam as autoridades.
As crianças são o grupo mais afetado por este tipo de violência sexual: 26,8% de todas as vítimas de estupro tinham no máximo 9 anos e 53,6% das vítimas, no máximo 13 anos. Além disso, 75,9% das vítimas conhecem o abusador, seja ele um parente, companheiro ou amigo.
Em entrevista à Sputnik Brasil, a socióloga e cientista política Jacqueline Pitanguy ressalta que 21.172 bebês nasceram de crianças entre 10 e 14 anos em 2018, de modo que a criança do Espírito Santo que mobilizou os holofotes do Brasil teve acesso ao tratamento que muitas outras pessoas não recebem.
Para ela, “o Brasil está se guiando hoje pelo espelho retrovisor, está indo para trás” e se alinha a um movimento global de governos de “direita e extrema-direita” que luta contra os direitos das mulheres.
A pesquisadora destaca que o aborto da menina é legal e previsto na lei, mas ainda assim virou um tema controverso porque existem “extremistas em espaços de governo e na sociedade civil”.
“O corpo da mulher historicamente sempre foi submetido, sempre foi um objeto de negociação e sempre foi, digamos assim, um troféu de domínio patriarcal sobre a vontade da mulher”, diz Pintaguy.
// Sputnik News